domingo, 22 de março de 2015

Capítulo 1


Entre uma linha de código e outra eu escrevia, ou lia. De qualquer modo eu parava, precisava de um momento para sentir o fluxo de idéias, mesmo que destoantes do conteúdo da minha dissertação. Antes de tudo era uma pausa, com o tempo virou uma fuga. No começo essa pausa vinha acompanhada de um café.

- Vamos tomar um café? Só um.
- Vamos, estou precisando mesmo.
E assim alguns minutos eram perdidos no dia para socializar, tomar um café, ler. Depois o café começou a fazer mal, o estômago doía, os enjoos começaram, tive que parar com o café, começar com o chá. Vamos tomar um chá? Pode ser. E ai cresceu a fome, chá sempre me deu fome, então vamos comer também uma bolacha (ou biscoito, não sou preconceituosa). Claro.
Entre um teste e outro eu fugia, enquanto os processos ainda eram processados eu pedia pra sair na minha cabeça e corria para quaisquer outras atividades. Acabou que nesse tempo eu li muito, lia qualquer coisa que colocassem na minha frente, qualquer autor por mais maluco que parecesse, eu estava lendo. Li sobre carneiros voadores, mas esse não consegui levar muito adiante. Li sobre assassinos em série obcecados por morenas de olhos verdes, li sobre parasitas brilhantes e mais algumas coisas que, na hora, enchiam minha cabeça de idéias alimentando meu tão secreto desejo de, quem sabe, um dia, ser uma escritora.
O que é ser uma escritora? Eu não sei dizer, é um trabalho, igual ao que eu faço no laboratório, mas como eu nunca fui, não sei qual é a rotina. A minha é bem restrita. Acordar, tomar café (a refeição, não necessariamente a bebida negra estimulante), tomar banho (as vezes este vem antes do café), trocar de roupa, colocar tênis, sair, trancar a porta, andar, andar, andar (nada de ônibus). Chegar ao laboratório, pegar água, ligar o monitor, código, código, código. Aí, entre uma linha e outra: almoço. Entre um teste e outro: café. Uma palavra, bom dia, boa tarde, nada. Rostos vazios a minha volta, olhos concentrados. Uma janela, pequena, ligando meus pensamentos ao mundo exterior. No fim tudo volta para aquela janela. Escolhi aquele monitor por ser perto da janela, já é o meu lugar. Tranquilo.
Foi fácil descrever minha vida, ou o que ela era, em algumas linhas, o que eu podia esperar? Quando era mais nova, minha imaginação era mais ativa, agora fora podada pelas linhas, pelas janelas que não abriam, pelo estresse. Minha cabeça tinha que ser prática, pesquisadora, a criatividade tinha que ser direcionada para meus problemas, mas claro, problemas relevantes para indústria. Artigos, congressos. Felicidade. Ou não. Entre uma caneca e outra de chá eu chorava. Não tenho vergonha de admitir, eu chorava, sempre e quando pudesse, era algo um tanto quanto involuntário, apesar de não ser involuntário a ponto das pessoas perceberem. Bom, pelo eu acho que escondi bem, não? Talvez flagrassem meus olhos vermelhos, o nariz ligeiramente inchado, nunca fui muito de gritar minhas dores para o mundo, sempre esperei que o mundo reconhecesse que, talvez, eu estivesse cansada de lutar.
Mas o mundo não tem dessas coisas, as pessoas não chegam simplesmente em você e dizem “Ok, pode descansar um pouco agora, durma, só um momento, recupere-se”, existe sempre alguém pior, sempre alguém que precisa mais. “Mas você devia ter vergonha, olhe eu, olhe como eu estou acabada, muito mais que você”. Então seguimos, já que não queremos passar a imagem de fraqueza, ou sermos injustos. Mas então, não seria o outro fraco também? As vezes acho que a fraqueza é relativa, eu sempre estou mal, quaisquer outras pessoas podem superar.
É confuso, justamente por isso, desde nova, decidi não recorrer à ajuda externa, não divulgar assim meus sentimentos. Se quisessem, eles que adivinhassem. Então, para o mundo externo sou feliz, acolhedora, uma ótima ouvinte e ponto. Portanto, como podem ver, minha vida se resume a poucas linhas, poucos sentimentos, poucas aparências. Nada mais. E leituras, das mais diversas, chegava a ser obsessivo, a leitura sempre fez bem, é o porto seguro dos melancólicos, o refúgio dos anti-sociais e era assim que me sentia, anti-social na maior parte do tempo.
Foi estranho quando as coisas começaram a mudar. Acho que a primeira mudança sutil que posso reconhecer depois de algum tempo, quando volto minha mente para o período mais obscuro da minha memória no laboratório, se deu enquanto navegava pela internet (numa das ligeiras fugas após o café, ou chá) e me deparei com várias pedras, umas mais bonita que a outra, envoltas em linhas de cores pulsantes, aquilo me fez parar, pensar. Queria uma, sim, pelo menos uma, eram tão coloridas, pareciam tão opostas a qualquer coisa que representava minha vida naquele momento. Foi ai que a mudança começou.

Ficção baseada na realidade

Bom, vou tentar começar a escrever uma série de posts com trechos da minha vida (realidade) misturadas com um pouco de ficção (seja nas descrições de personagens, passagens específicas do dia, ou mesmo nos sentimentos, talvez exagerados). A arte imita a vida, talvez a vida imite a arte, não importa. Qualquer semelhança pode não ser mera coincidência. Assim como uma coincidência pode ser apenas uma semelhança.